29 de maio de 2015

Os estados mentais inconscientes existem?

por Daniel F. Gontijo*


Embora a Filosofia da Mente possua uma agenda muito ocupada com os problemas da consciência, há uma questão que, para os psicólogos mais céticos e pragmáticos, pode ser muito mais atraente e envolvente – mas igualmente polêmica. Essa questão, que parece passar intocada pelos graduandos de Psicologia, por seus professores e para o público leigo, é a de se os estados mentais inconscientes(1) realmente existem – logo eles, que são rotineiramente invocados para se explicar o comportamento. Antes disso, é impressionante como até mesmo nós, clínicos e/ou professores, temos dificuldade em descrever o que são esses estados mentais – ou o que é a mente, afinal. Mas eu não estou aqui para tentar resolver o problema, e sim, entre outros motivos – inconscientes? –, para colocá-lo sobre a mesa. Devo adiantar que o que virá a seguir não é uma análise sobre os conteúdos e processos inconscientes postulados pela Psicanálise, da qual eu não tenho o menor domínio, e sim sobre a tese mais genérica e popular de que existe uma fatia da mente que trabalha e nos afeta sem sequer percebermos.




O que são os estados mentais inconscientes?

 Em seu livro "A redescoberta da mente", o filósofo John Searle (1997/2006) comentou que

nossa noção pré-teórica, ingênua, de um estado mental inconsciente é a ideia de um estado mental consciente menos a consciência. Mas o que exatamente isso significa? Como poderíamos subtrair a consciência de um estado mental e ainda resultar um estado mental? Desde Freud, ficamos tão acostumados a falar sobre estados mentais inconscientes que perdemos de vista o fato de que a resposta a essa questão não é absolutamente óbvia (pp. 218-219).
Basicamente, a ideia de Searle é a de que acreditamos que os estados mentais inconscientes sejam idênticos aos estados mentais conscientes, exceto por não serem conscientes. O problema disso é que, sem as propriedades fenomênicas, ou conscientes (e.g., cor, som e sensação), que caracterizam os estados mentais, quase nada resta para nos prover um entendimento do que sejam esses estados mentais. Especificamente, o que restaria das noções de raiva e desejo, enquanto eventos sentidos, caso retiremos as sensações que lhes caracterizam? E o que restaria da noção de lembrança, enquanto, digamos, um conjunto de eventos privadamente vistos (e.g., o rosto de Michael Jackson) ou ouvidos (e.g., o refrão de "Billie Jean"), caso retiremos os componentes visuais ou auditivos que lhe caracterizam? Sem essas propriedades, passamos a não ter a menor ideia do que se tratam a raiva, o desejo e a lembrança inconscientes. Tal como uma cadeira sem um encosto, um assento e uma base/pés está longe de se parecer com o que entendemos por "cadeira", um estado mental sem suas propriedades fenomênicas está longe de se assemelhar com o que conhecemos por "estado mental". Diante disso, podemos justificadamente questionar não só em que exatamente os estados mentais inconscientes consistem, mas também se eles realmente existem.

"Essas são as suas novas cadeiras?"
Os estados mentais inconscientes existem? 

Se concebermos um estado mental como um evento subjetivamente privado (cf. Creel, 1980), isto é, como um evento que só pode ser experimentado pelo indivíduo que o apresenta (e.g., os sentimentos, as lembranças e os sonhos), podemos logicamente concluir que "Não, os estados mentais inconscientes não existem, pois não faz sentido dizer que apresentamos experiências conscientes de eventos dos quais não temos consciência". Nesse caso, dizer que os eventos mentais podem ser inconscientes é tão inconsistente quanto a crença de Quico – aquele da vila do Chaves – de que existia uma bola quadrada. Tal como não podemos imaginar o que seria uma bola quadrada, parece que não podemos inteligivelmente conceber o que seriam os estados mentais inconscientes. Assim, para se defender que os estados mentais inconscientes realmente existem, é necessário fazer com que a noção de "mental" abranja mais do que os tipos de evento de que podemos ter experiência privada. Isso, como veremos agora, foi o que Searle procurou fazer para tentar solucionar o problema:

A ontologia de estados mentais inconscientes, durante o tempo em que são inconscientes, consiste inteiramente na existência de fenômenos puramente neurofisiológicos (p. 228, destaque meu).
Dentre os processos neurofisiológicos inconscientes, alguns são mentais, outros não. A diferença entre eles não está na consciência, porque, por hipótese, nenhum é consciente; a diferença é que os processos mentais são candidatos à consciência, porque são capazes de causar estados conscientes (p. 232).

Em suma, Searle estendeu aos processos neurofisiológicos conscientizáveis a noção daquilo que podemos chamar de "mental". Os estados mentais inconscientes seriam, nesse sentido, os estados neurofisiológicos do cérebro que, embora em estado "latente", ou "disposicional", podem ocasionalmente ser experimentados conscientemente por quem os apresenta. O autor cita a crença como um tipo desses estados mentais. Por exemplo, um indivíduo que tem a crença de que o Cristo Redentor está no Rio de Janeiro não deixa de possuir essa crença enquanto está em sono profundo, ou mesmo, estando desperto, enquanto não está pensando no assunto. Mas, nesses casos, essa crença existiria apenas enquanto um estado mental neurofisiológico passível de ser conscientizado.

Como podemos ver, a solução de Searle oferece uma noção muito menos colorida, ou psicológica, da natureza dos conteúdos que, a despeito de nossa consciência, afetam nosso comportamento. Especificamente, o autor sublinhou que, "durante o tempo em que os estados [mentais] estão totalmente inconscientes, não há simplesmente nada lá, exceto estados e processos neurofisiológicos" (p. 229). Voltando à analogia que fiz anteriormente, é como se a bola quadrada do Quico realmente existisse, mas ela não seria quadrada conforme as regras da geometria.

Se a proposta de Searle parece salvar a tese de que os estados mentais inconscientes existem, ela parece fazê-lo sob uma condição: desde que esses estados são, no final das contas, estados neurofisiológicos, seu estudo não poderia mais pertencer à Psicologia, e sim à Neurociência. Ora, uma vez que os estados mentais inconscientes não são psicologicamente mentais, e sim, por mais estranho que pareça, neurofisiologicamente mentais, eles passam a demandar um método de análise distinto, e talvez uma teia conceitual alternativa. Mesmo que a Neurociência tome a Psicologia como uma forte aliada, o funcionamento do sistema nervoso central está longe de ser o objeto de estudo que os cientistas da mente/do comportamento primordial e oficialmente elegeram. Portanto, a solução de Searle para o problema dos estados mentais inconscientes parece não ser muito útil àqueles psicólogos interessados em estudar esses estados mentais sob a perspectiva psicológica – a não ser no sentido de fazê-los desistir desse projeto ou, quem sabe, de incentivá-los a se tornarem neurocientistas.

Algumas considerações

Obviamente, a proposta de Searle não é a palavra final sobre o problema dos estados mentais inconscientes. Embora ele tenha conseguido dar um contorno ontológico a esses estados, eu não estou tão satisfeito quanto à adequação de se mentalizar os estados neurofisiológicos passíveis de serem experimentados conscientemente por quem os apresenta. No meu ponto de vista, essa saída é tão estranha quanto seria dizer que, uma vez que a água em estado sólido pode se quebrar, seu estado líquido seria também quebradiço. A água tem a "disposição" para se quebrar e o cérebro tem a "disposição" para gerar estados mentais conscientes (i.e., dependendo da circunstância, eles podem apresentar essas características), mas não me parece correto dizer que a água líquida é quebradiça e que os estados neurofisiológicos conscientizáveis são estados mentais inconscientes. No final das contas, tenho a impressão de que essa extensão conceitual não nos isenta de mais problemas conceituais.

Por fim, não quero deixar a impressão de que eu não acredito que o comportamento seja também causado por variáveis das quais não temos consciência. É claro que essas variáveis existem. A questão a ser enfrentada é simplesmente a de se algumas dessas variáveis são do tipo mentalpsíquico ou psicológico, e a resolução desse problema começa, é claro, em se definir bem a natureza dos estados mentais. A despeito da minha insatisfação quanto à proposta de Searle, devo dizer que estou inclinado a pensar que a Neurociência tem, ou terá, mais a nos oferecer acerca desse assunto do que a própria Psicologia. Por outro lado, eu honestamente torço para encontrar quem me convença do contrário.


Nota

(1) Como comentei noutra ocasião, mesmo que não seja um grande pecado chamar esses estados de "inconscientes", deve-se ter em mente que eles seriam inconscientes para o indivíduo, ou seja, eles seriam inconscientes apenas no sentido de que alguém não possui consciência deles (cf. Bennett & Hacker, 2003).

Referências

  • Bennett, M. R., & Hacker, P. M. S. (2003). Fundamentos filosóficos da neurociência. Lisboa: Instituto Piaget.
  • Searle, J. (1997/2006). A redescoberta da mente. São Paulo: Martins Fontes.

*Texto publicado originalmente no Blog Montando o Quebra-Cabeça

6 comentários:

  1. Daniel,

    Parabéns pelo texto! Solicito sua autorização para utilizá-lo com acadêmicos do curso de psicologia e interessados que tenho contato...OK!

    Entretanto, tratar o tema inconsciente requer andarmos MUITO vagarosamente tendo em vista a grande dificuldade do tema. Em primeiro lugar creio que tenhamos que ter clareza do conceito de consciência. Me parece que não temos como tratar o insciente se antes sabermos da consciência. Em segundo, concordo com você da necessidade de se focar uma análise bem mais rigorosa em relação à inconsciência tendo em vista que, principalmente no meio médico e psicológico, este termo parece ser utilizado como se seu conceito fosse algo plenamente claro e consensual entre a comunidade científica.... O QUE NÃO É O CASO! Em terceiro, o Searle, que é um autor que na área da linguagem eu tenho grande apreço, parece levar sua confusão construída através do argumento do Quarto Chinês para a análise do problema da Inconsciência...

    ... e assim vamos....

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    1. Este comentário foi removido pelo autor.

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    2. Nivaldo, fique à vontade para utilizar meu texto em outros locais!

      E concordo com você: não dá para estudarmos os estados mentais inconscientes sem termos uma boa noção de "consciência" - ou, antes disso, não dá para estudarmos quaisquer estados mentais sem termos uma boa noção de "mente".

      Vamos conversando...

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  2. Daniel,

    Primeiramente, meus parabéns pelo texto. Admiro sua capacidade de escrever um texto de forma clara e objetiva, ainda mais quando tratamos de um tema tão complexo.

    Ao ler o texto, me recordei das primeiras aulas do curso de Direito, mais precisamente no estudo da teoria geral do crime. Ao estudar alguns institutos, nos deparamos com conceitos que envolvem o estudo dos estados mentais (sejam conscientes ou inconscientes). Entre esses conceitos estão os de culpa consciente e culpa inconsciente. Com isso é possível perceber que uma conceituação do que vem a ser o inconsciente não afeta somente a psicologia, mas guarda intima relação com o Direito. Minha preocupação é a seguinte, se ainda não temos uma noção muita clara do que é o consciente e inconsciente, se é que ele(s) existem, como tantas disciplinas e áreas distintas se utilizam dessas expressões como se fossem absolutas?

    Meu conhecimento em relação ao problema da consciência é bastante raso. Mas, pelo que pude compreender, para Searle o inconsciente são estados e processos neurofisiológicos, o que desloca a “competência” de estudo da psicologia para as neurociências. Assumindo essa faceta, seria possível afirmar que pessoas com lesões cerebrais ou algo semelhante poderiam ser desprovidas dessa coisa chamada inconsciente?

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  3. Ótimo texto. O tema tem poder excelente, para compor o assunto de tal natureza.

    Edson Stofela

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